Uma hérnia é um problema de saúde mais comum do que se pode pensar. Estima-se que as hérnias da parede abdominal afetam cerca de 28 milhões de brasileiros adultos, o que representa de 20% a 25% da população. O que torna o tema mais delicado é o fato de que todo caso de hérnia é cirúrgico. Ou seja, realizar um procedimento é a única forma de corrigir a falha.
Os pacientes com essa condição possuem três opções de cirurgias: convencional ou aberta, com um corte maior; videolaparoscopia, realizada com câmeras; e robótica, o método mais novo. As duas últimas opções são cirurgias minimamente invasivas e mais benéficas para a recuperação do paciente. No entanto, elas ainda são minoria no Sistema Único de Saúde (SUS). Portanto, pacientes atendidos pela rede pública nem sempre conseguem escolher o método mais indicado por especialistas da área.
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Dados da Sociedade Brasileira de Hérnia e Parede Abdominal (SBH) mostram que no Paraná, das 42.010 cirurgias de hérnia realizadas em 2023 e 2024, apenas 323 foram minimamente invasivas, representando apenas 0,7% do total. Os números não são baixos apenas no estado. O índice mais alto de cirurgia videolaparoscópica é no Mato Grosso do Sul, com 1,9% dos procedimentos. Estados como Pará e Paraíba estão na casa dos 0,2%.
O que são hérnias da parede abdominal?
Cirurgiã de hérnia e diretora da SBH, Luciana Guimarães, explica que a hérnia é um defeito da parede abdominal. “O nome parede não é à toa porque em uma parede a gente tem a tinta, a massa corrida, o tijolo. Aqui é a mesma coisa: a gente tem a pele, a gordura, o tecido chamado aponeurose, músculo e algumas vezes essas camadas se repetem. Isso tudo tem que estar íntegro. Por quê? Se eu tenho uma falha, um buraco nesse músculo e aponeurose, as coisas de dentro da minha barriga vão entrar naquele buraco e vão bater aqui debaixo da minha pele. Isso é uma hérnia”, relata Luciana.
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De acordo com a profissional, a hérnia de parede abdominal é a doença cirúrgica mais comum que existe na prática diária do cirurgião geral. A condição pode ser desenvolvida de diferentes formas. “Nós podemos ter hérnias que a pessoa nasce com elas, hérnias que vão se desenvolver ao longo da vida ou as chamadas hérnias incisionais – que surgem devido a uma cirurgia que o paciente precisou fazer”.
Segundo Luciana, os tipos mais comuns são as hérnias umbilicais, inguinais – na virilha direita ou esquerda e incisionais – que podem ser em qualquer região do abdômen. “Existem também as hérnias lombares. A gente às vezes esquece que a nossa parede abdominal não é só anterior, existe uma parede abdominal lateral e ela vai até a região posterior, mais ou menos na topografia da nossa coluna. Então a gente pode ter hérnia lá atrás também. Já são um pouco mais complexas e um pouco mais difíceis de serem tratadas, mas também são mais raras”, completa.
Importância da cirurgia minimamente invasiva
Mas afinal, por que a cirurgia minimamente invasiva é tão importante para esses casos? Presidente da SBH e cirurgião dedicado ao tratamento de hérnias, Gustavo Soares, explica que, diferente do método convencional, as cirurgias videolaparoscópica e robótica fazem pequenos cortes no paciente. “Como você invade menos, não tem uma incisão cirúrgica clássica, não tem as complicações que a gente chama de complicações de sítio cirúrgico. Que são as complicações que ocorrem no local da cirurgia, decorrente do trauma cirúrgico que na cirurgia aberta é muito maior do que na minimamente”.
“Decorrente disso, de ter menos invasão, você tem reflexo no pós operatório. Ele tende a ser mais rápido e confortável na abordagem minimamente invasiva. Diminuem muito as complicações do risco cirúrgico, risco de infecção, pontos se abrirem. Essa é a grande vantagem da técnica, você tem muito menos ocorrência do que na aberta e, por isso, o pós operatório é mais rápido e confortável”, diz Soares.
Luciana também defende a importância da minimamente invasiva acrescentando que não faz sentido tratar uma hérnia com um corte cirúrgico grande. “O raciocínio disso é muito simples: se eu estou operando a parede abdominal e eu quero curar um defeito na parede, imagina fazer uma grande incisão de novo. Eu estou agredindo essa parede. Então a minimamente permite que a gente trate grandes orifícios herniários sem agredir a parede abdominal e conseguindo um melhor campo de trabalho”.
Diferença das técnicas

Independentemente do método, Luciana Guimarães relata que o procedimento consiste em fechar a hérnia e colocar uma tela, que pode ter diferentes tamanhos e materiais. “Essa tela é como se fosse um retalho ali. Ela vai reforçar esse tecido e impedir que aquela costura, aquela sutura que a gente fez se rompa”.
Gustavo Soares comenta que a videolaparoscopia é uma técnica que surgiu há cerca de 30 anos. Já a robótica se tornou mais frequente nos últimos dez anos. Para o cirurgião especializado em robótica, Christiano Claus, os métodos menos invasivos facilitam a execução de um bom trabalho.
“A diferença na videolaparoscopia é que, em primeiro lugar, o cirurgião está olhando para uma tela e ele comanda as pinças, os instrumentais. Quando a gente fala na robótica, o cirurgião se coloca no console do robô, que é como se ele entrasse dentro do abdômen do paciente, então ele tem uma visão tridimensional e uma melhor qualidade de visão. O cirurgião vai controlar os braços ou os instrumentos do robô que estão entrando através dessas pequenas incisões dentro do abdômen do paciente. Os movimentos realizados pelo robô comandado pelo cirurgião são mais precisos, seguros e efetivos. Inclusive os braços robóticos conseguem fazer movimentações que nem a mão humana é capaz de fazer. Isso que dá mais precisão e segurança para a cirurgia robótica”, defende Claus.
O subtenente da Polícia Militar do Paraná, Marcio Rogério Lemos, de 46 anos, foi operado recentemente pela técnica tradicional (peito aberto). Ele só recebeu alta médica após 30 dias do procedimento e, apesar de considerar que teve uma recuperação “boa e plena”, ele acredita que tudo seria melhor se a cirurgia pudesse ter sido por técnicas minimamente invasivas.
“Caso fosse possível fazer por vídeo, provavelmente a recuperação seria mais rápida e imagino que riscos relacionados a infecções também seriam reduzidos. Além disso, cortes grandes como o meu geram mais dores e incômodos, o que não acontece nos procedimentos por vídeo ou com o auxílio de robôs. Isso sem falar na parte estética, que deixaria tudo melhor”, lamentou.
O que falta para o SUS
A cirurgia minimamente invasiva pode garantir mais qualidade de vida para o paciente, por possibilitar recuperação mais rápida e menos riscos. No entanto, o método é pouco usado no SUS. Soares aponta dois motivos para o problema: financeiro e treinamento de equipe cirúrgica.
“É uma cirurgia que precisa de um treinamento específico, não é o que é apresentado historicamente nas faculdades e nas residências. Isso tem mudado, mas ainda é realidade. Você tem um contingente de cirurgiões treinados em cirurgia minimamente invasiva menor que os treinados em cirurgias convencionais. Por causa do custo mais alto e da capacitação técnica mais especifica, a gente vê que o número de cirurgias pelo SUS pela linha minimamente invasiva ainda é muito baixo”.
Se a videolaparascopia já possui diversas barreiras no sistema público, quando se fala da cirurgia robótica a possibilidade parece ainda mais distante. “Hoje no Brasil temos mais ou menos 150 plataformas robóticas. Dessas, menos de dez robôs estão instalados em serviços públicos. Tem, mas como é uma tecnologia cara, a imensa maioria das plataformas robóticas no Brasil estão dentro de hospitais privados. Se a gente imaginar que tem 150 robôs e menos de dez estão dentro do SUS, isso representa que apesar de existir, esse número é ainda bastante baixo”, avalia Claus.
Em relação aos custos, Claus diz que os equipamentos robóticos são, em média, dez vezes mais caros que os equipamentos de vídeo.
No entanto, para Luciana, é possível aumentar o número de cirurgias laparoscópicas sem elevar muito os custos. “Se a gente tem uma torre de vídeo, seria a tela de material, que eu também vou precisar mesmo sendo aberta a cirurgia. Por isso que a gente insiste tanto em difundir a técnica e ensinar. Esse é o maior objetivo da Sociedade Brasileira de Hérnia hoje, mostrar para o cirurgião que ele pode fazer uma cirurgia minimamente invasiva. Por exemplo, para uma hérnia inguinal que não exceda o custo que ele teria se a cirurgia fosse aberta. Eu posso fazer determinadas técnicas, eu preciso só de uma tela para fazer e a torre de vídeo, que é mais comum, que seria o mesmo material que a gente usa pra operar uma vesícula”.
Problema ‘comum’ que merece muita atenção
Assunto que impacta diretamente a saúde de milhões de pessoas, os cirurgiões acreditam que a divulgação é um dos caminhos para chamar atenção para as hérnias de parede abdominal e a importância das técnicas cirúrgicas menos invasivas.
“O Brasil na saúde pública evoluiu muito nas últimas três décadas, mas ainda tem um caminho longo para percorrer. A cirurgia minimamente invasiva está sendo incorporada no SUS, mas por causa da questão financeira ela não ocorreu na mesma velocidade que no sistema privado. A solução disso a por questões de financiamento e gestão de recursos”, afirma Soares.
“A gente está com um projeto em tramitação no Congresso Nacional para criação de um Dia Nacional da Conscientização da Hérnia de Parede Abdominal. Esse vai ser um mecanismo muito interessante para gente ter mais ferramentas para divulgar conhecimento para a população geral e para o meio médico em relação à hérnia de parede abdominal, que é uma situação muito frequente, quase um quarto da população vai ter hérnia em alguma fase da vida. No mundo são 300 milhões de cirurgias ao ano, dessas 20 milhões são de hérnia. A gente precisa chamar atenção para um problema que acomete tantas pessoas”, acrescenta.
“A gente encara um problema tão comum que tanta gente tem que é uma hérnia e a gente fala pouco, porque é o comum. Ninguém é operado oito vezes de vesícula e ninguém tira oito vezes um útero. Mas a hérnia, já atendi paciente que foi operado oito vezes. E aí alguma coisa a gente precisa melhorar nessa história. Então a gente fala isso ‘é só uma hérnia’. O só uma hérnia vira verdadeira catástrofe na vida da pessoa. Então enquanto é simples, é a hora que a gente tem que fazer nosso melhor”, reflete Luciana.
Como é a situação no Paraná
Por meio de nota, a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) revelou que 30 hospitais do Paraná realizam cirurgias de hérnias pelo SUS. Eles ficam em Campina Grande do Sul, Campo Largo, Curitiba, Lapa, Apucarana, Londrina, Arapongas, Maringá, Foz do Iguaçu, Umuarama, Paranaguá, Cascavel, Telêmaco Borba, São José dos Pinhais, Paranavaí, Francisco Beltrão e Ponta Grossa
“Técnicas minimamente invasivas são indicadas para correção de hérnias da parede abdominal. Os pacientes com indicação para cirurgia são avaliados pela atenção primária à saúde, com posterior encaminhamento para consulta especializada e inserção na fila de regulação estadual, de acordo com prioridade clínica e disponibilidade da rede hospitalar”.
Sobre as cirurgias minimamente invasivas, a Sesa alegou que o Programa Opera Paraná tem o intuito de fortalecer a realização de procedimentos eletivos e ampliar a oferta desse tipo de técnica. “Por exemplo, em 2024, o Hospital Regional da Lapa São Sebastião (RMC) realizou sua primeira cirurgia por vídeo após a aquisição de uma torre de videolaparoscopia, com apoio da Secretaria de Estado da Saúde”.
Sobre os custos de cirurgias minimamente invasivas e tradicionais, a Sesa confirmou que a primeira opção possui custo inicial mais elevado. No entanto, não detalhou os valores.
A reportagem também procurou o Ministério da Saúde para falar sobre o uso das técnicas mais modernas nos procedimentos realizados pelo SUS e também sobre os questionamentos acerca de valores e falta de mão de obra qualificada para a operação dos equipamentos, mas até a publicação desta reportagem não tivemos retorno.
